segunda-feira, 4 de outubro de 2010

OS LIVROS E SUAS DIFICULDADES Marcia Abreu

Fernando Pessoa: íntimas passagens
2605_fpessoa_gde.jpg “Para ser grande, sê inteiro: nada/ Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és/ No mínimo que fazes. / Assim em cada lago a lua toda/ Brilha, porque alta vive”.(F. Pessoa).
São Paulo, Estação da Luz, quinta-feira, 11 horas. Museu da Língua Portuguesa. Exposição: "Fernando Pessoa, Plural como o Universo".
“Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha”. (F. Pessoa).
Entro no elevador com o coração solene de expectativas. Dou de cara com alguns dos plurais do poeta português: os heterônimos mais conhecidos, lidos e impregnados na pele leitora dos amantes da poesia. Reencontro Alberto Caieiro, o guardador de rebanhos; Ricardo Reis, o que vivia no Brasil desde 1919; Álvaro de Campos, que teve educação vulgar de Liceu, um tipo vagamente de judeu português; Bernardo Soares, um semi-heterônimo e Fernando Pessoa, o próprio: o guardador dos plurais.
Reparo discretamente nos painéis que acolhem cada visitante no passeio pela exposição.Todos os “Fernandos” de chapéu escuro, óculos, gravata e casaco aos joelhos. E o mesmo ar quase misterioso. Misto de timidez com um ar sisudo e discreto.
Tudo começa com a apresentação do poeta. Há um bar avermelhado, mesas e cadeiras suspensas, com direito a café em xícara branquinha e um manuseio imaginário da revista Orfheu. Ali, à mesa, Fernando Pessoa (1888-1935) rabiscaria talvez o próximo poema. Somos espreitados e protegidos pelo seu chapéu suspenso que nos acolhe e nos convida a encontrar o poeta plural e único. Temos vivificado na imaginação, o retrato que Almada Negreiros fez do homenageado, em 1954.
Em pequenos nichos ainda visitamos brevemente os heterônimos. Biografias particulares.Temos instantâneos com cada um deles, com direito a trechos de poemas que se movimentam no escuro a partir dos nossos movimentos transeuntes e ingênuos. Parecem reinventar e remexer os desenhos poéticos do autor. Pelo nosso olhar desejoso de compreender, sentimos um pouco do sopro possível do ato criador, do fazer poético de cada heterônimo em seu micro universo.
“Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?” (F. Pessoa).
Vou me adentrando na exposição. Pouco a pouco e em poucos minutos vamos nos aconchegando no plural do poeta, o guardador da humanidade. Ali, visitantes temporários, saboreamos dos sentimentos exalados nas palavras da sua poesia. O essencial é saber ver, lentamente, no espaço que nos foge de alguma presença. Sentir? Saber ver? Talvez uma breve experiência da aprendizagem de desaprender. Estamos ali passeando, apenas. Pelas paredes, negros muros, passam vários “Pessoas” estampados em branco. Branco no preto. No preto que guarda todas as cores, se estampa o poeta, guardador de todas as palavras. Temos a nosso dispor uma breve constelação que brilhará no nosso pequeno universo desconhecido e inteligente.
Do outro lado, paredes com mais imagens, fotos, fac-símiles dos tantos manuscritos desse homenageado. Há um labirinto com poemas em relevo nas paredes. Há transparências, onde mergulha o nosso olhar infantil. Nas paisagens do mar e de Lisboa, revisitamos Fernando Pessoa que ressurge como personagem-paisagem. Tudo brota em nosso imaginário, desbotado pelo viver rápido e fugidio. Aprendemos um tanto nessa breve experiência de passagem e calma com as palavras. Ouvimos vozes múltiplas e expressivas declamado trechos do poeta. Testemunhamos o tique-taque da máquina de escrever trabalhando na luta com as palavras, o som de pássaros perto do mar. Talvez, o barulho da alma cantante das palavras...
Fernando Pessoa vai convivendo no mais íntimo do humano em nós. Coexiste. Sinto um silêncio generoso que nos abraça de quando em vez, através de seus versos. As palavras dos poemas gravadas pelo nosso olhar ressuscitam nossa própria vida fugaz. Fernando Pessoa está ali, grandioso. Ficamos como girassol fitando o sol antes da noite avassaladora nos invadir.
Num recanto um grande espelho brinca com nossa identidade. Quem sou? Quem somos? ” Não sei quem eu sou, que alma tenho”. “Há mais eu que eu mesmo”. “Sinto-me múltiplo”. Somos amalgamados por essa idéia que nos deforma frente ao espelho. Isso. Idéia forte, concreta, pungente. A da coexistência.
“Que voz vem no som das ondas/ Que não é a voz do mar? / É a voz de alguém que nos fala,/ Mas que, se escutarmos, cala,/ Por ter havido escutar.”(F.Pessoa).
Respiro mais forte e continuo.
Duas grandes fotos com o rosto do poeta se abrem ao próximo espaço. Amplo. Ao fundo dois telões: à esquerda, o mar da multidão humana. Na multidão de pessoas o movimento contínuo, a busca do eterno compreender, descobrir. Somos um, únicos e muitos. À direita, o mar. As ondas e o encontro das águas com as rochas, o contínuo movimento da vida. A eternidade? Ao centro, um espaço solene: um quadrado feito com uma pintura renascentista de Nuno Gonçalves impera majestosamente. Como um altar. Um monumento. Uma homenagem ao espírito navegador português? Logo me veio à mente o lema fiel do poeta: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. Ao meio uma bola: o universo, o pêndulo do tempo? Nem ouso pensar mais. Distraio-me com duas brancas pranchas que saem das laterais. Vemos as palavras do poeta se desenharem aos nossos olhos, letra por letra, palavra por palavra na areia do mar luso, como se estivessem se escrevendo no momento criador do poeta. Pouco a pouco elas configuram nos versos e estrofes de Mensagem. Depois se apagam com o movimento do mar, levando-as para a imensidão. Fica o encantamento leitor.
Bem em frente ao monumento a Portugal uma mesa comprida, como a de um banquete. Também bancos recobertos de veludo pálido para a gente se servir de aconchego. Ali, sobre a mesa comprida, inaugura-se outra exposição: uma coletânea dos muitos livros de e sobre Fernando Pessoa, publicados em vários países a serem saboreados. Nosso olhar dança no manuseio das páginas das edições espalhadas ludicamente. O solene vira cotidiano. O altar vira uma sala de leitura. Sobre a mesa, há ainda a projeção de um manuscrito do livro Mensagem, com anotações do autor. Suas páginas podem ser viradas por meio de um sensor.
Ao longo das paredes, podemos também passar o nosso olhar por várias publicações do homenageado: livros, revistas, quadros, fotos, objetos e uma maquete. Entre os documentos, há revistas publicadas nas décadas de 10, 20 e 30 do século passado, como a "Portugal Futurista", marco do movimento modernista português.
“Da mais alta janela da minha casa/ Com um lenço branco digo adeus/ Aos meus versos que partem para a Humanidade”. (F. Pessoa).
No corredor de saída temos, para o nosso saber sobre o poeta misterioso e pouco revelador de si mesmo, um painel cronológico. Podemos nos enveredar por várias descobertas. O que pude verificar rapidamente numa consulta enviesada ao painel é que em 1894, com seis anos de idade, o menino Fernando Pessoa se desdobra já em seu primeiro heterônimo: Chevalier de Pas. Com sete anos escreve seus primeiros versos em homenagem a mãe. Com 14 anos, cria pequenos jornais. E, a partir de 1906, com 18 anos, inicia a criação de uma multiplicidade de alter-egos e vários heterônimos. Há muitos outros detalhes para saber e descobrir.
Saio aturdido, feliz, plenamente acolhido pela poesia do guardador de tantos e de todos nós.
Antonio Gil Neto
Saiba mais: http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/
Publicado em: 14/09/2010
Fernando Pessoa: íntimas passagens
2605_fpessoa_gde.jpg “Para ser grande, sê inteiro: nada/ Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és/ No mínimo que fazes. / Assim em cada lago a lua toda/ Brilha, porque alta vive”.(F. Pessoa).
São Paulo, Estação da Luz, quinta-feira, 11 horas. Museu da Língua Portuguesa. Exposição: "Fernando Pessoa, Plural como o Universo".
“Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha”. (F. Pessoa).
Entro no elevador com o coração solene de expectativas. Dou de cara com alguns dos plurais do poeta português: os heterônimos mais conhecidos, lidos e impregnados na pele leitora dos amantes da poesia. Reencontro Alberto Caieiro, o guardador de rebanhos; Ricardo Reis, o que vivia no Brasil desde 1919; Álvaro de Campos, que teve educação vulgar de Liceu, um tipo vagamente de judeu português; Bernardo Soares, um semi-heterônimo e Fernando Pessoa, o próprio: o guardador dos plurais.
Reparo discretamente nos painéis que acolhem cada visitante no passeio pela exposição.Todos os “Fernandos” de chapéu escuro, óculos, gravata e casaco aos joelhos. E o mesmo ar quase misterioso. Misto de timidez com um ar sisudo e discreto.
Tudo começa com a apresentação do poeta. Há um bar avermelhado, mesas e cadeiras suspensas, com direito a café em xícara branquinha e um manuseio imaginário da revista Orfheu. Ali, à mesa, Fernando Pessoa (1888-1935) rabiscaria talvez o próximo poema. Somos espreitados e protegidos pelo seu chapéu suspenso que nos acolhe e nos convida a encontrar o poeta plural e único. Temos vivificado na imaginação, o retrato que Almada Negreiros fez do homenageado, em 1954.
Em pequenos nichos ainda visitamos brevemente os heterônimos. Biografias particulares.Temos instantâneos com cada um deles, com direito a trechos de poemas que se movimentam no escuro a partir dos nossos movimentos transeuntes e ingênuos. Parecem reinventar e remexer os desenhos poéticos do autor. Pelo nosso olhar desejoso de compreender, sentimos um pouco do sopro possível do ato criador, do fazer poético de cada heterônimo em seu micro universo.
“Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?” (F. Pessoa).
Vou me adentrando na exposição. Pouco a pouco e em poucos minutos vamos nos aconchegando no plural do poeta, o guardador da humanidade. Ali, visitantes temporários, saboreamos dos sentimentos exalados nas palavras da sua poesia. O essencial é saber ver, lentamente, no espaço que nos foge de alguma presença. Sentir? Saber ver? Talvez uma breve experiência da aprendizagem de desaprender. Estamos ali passeando, apenas. Pelas paredes, negros muros, passam vários “Pessoas” estampados em branco. Branco no preto. No preto que guarda todas as cores, se estampa o poeta, guardador de todas as palavras. Temos a nosso dispor uma breve constelação que brilhará no nosso pequeno universo desconhecido e inteligente.
Do outro lado, paredes com mais imagens, fotos, fac-símiles dos tantos manuscritos desse homenageado. Há um labirinto com poemas em relevo nas paredes. Há transparências, onde mergulha o nosso olhar infantil. Nas paisagens do mar e de Lisboa, revisitamos Fernando Pessoa que ressurge como personagem-paisagem. Tudo brota em nosso imaginário, desbotado pelo viver rápido e fugidio. Aprendemos um tanto nessa breve experiência de passagem e calma com as palavras. Ouvimos vozes múltiplas e expressivas declamado trechos do poeta. Testemunhamos o tique-taque da máquina de escrever trabalhando na luta com as palavras, o som de pássaros perto do mar. Talvez, o barulho da alma cantante das palavras...
Fernando Pessoa vai convivendo no mais íntimo do humano em nós. Coexiste. Sinto um silêncio generoso que nos abraça de quando em vez, através de seus versos. As palavras dos poemas gravadas pelo nosso olhar ressuscitam nossa própria vida fugaz. Fernando Pessoa está ali, grandioso. Ficamos como girassol fitando o sol antes da noite avassaladora nos invadir.
Num recanto um grande espelho brinca com nossa identidade. Quem sou? Quem somos? ” Não sei quem eu sou, que alma tenho”. “Há mais eu que eu mesmo”. “Sinto-me múltiplo”. Somos amalgamados por essa idéia que nos deforma frente ao espelho. Isso. Idéia forte, concreta, pungente. A da coexistência.
“Que voz vem no som das ondas/ Que não é a voz do mar? / É a voz de alguém que nos fala,/ Mas que, se escutarmos, cala,/ Por ter havido escutar.”(F.Pessoa).
Respiro mais forte e continuo.
Duas grandes fotos com o rosto do poeta se abrem ao próximo espaço. Amplo. Ao fundo dois telões: à esquerda, o mar da multidão humana. Na multidão de pessoas o movimento contínuo, a busca do eterno compreender, descobrir. Somos um, únicos e muitos. À direita, o mar. As ondas e o encontro das águas com as rochas, o contínuo movimento da vida. A eternidade? Ao centro, um espaço solene: um quadrado feito com uma pintura renascentista de Nuno Gonçalves impera majestosamente. Como um altar. Um monumento. Uma homenagem ao espírito navegador português? Logo me veio à mente o lema fiel do poeta: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. Ao meio uma bola: o universo, o pêndulo do tempo? Nem ouso pensar mais. Distraio-me com duas brancas pranchas que saem das laterais. Vemos as palavras do poeta se desenharem aos nossos olhos, letra por letra, palavra por palavra na areia do mar luso, como se estivessem se escrevendo no momento criador do poeta. Pouco a pouco elas configuram nos versos e estrofes de Mensagem. Depois se apagam com o movimento do mar, levando-as para a imensidão. Fica o encantamento leitor.
Bem em frente ao monumento a Portugal uma mesa comprida, como a de um banquete. Também bancos recobertos de veludo pálido para a gente se servir de aconchego. Ali, sobre a mesa comprida, inaugura-se outra exposição: uma coletânea dos muitos livros de e sobre Fernando Pessoa, publicados em vários países a serem saboreados. Nosso olhar dança no manuseio das páginas das edições espalhadas ludicamente. O solene vira cotidiano. O altar vira uma sala de leitura. Sobre a mesa, há ainda a projeção de um manuscrito do livro Mensagem, com anotações do autor. Suas páginas podem ser viradas por meio de um sensor.
Ao longo das paredes, podemos também passar o nosso olhar por várias publicações do homenageado: livros, revistas, quadros, fotos, objetos e uma maquete. Entre os documentos, há revistas publicadas nas décadas de 10, 20 e 30 do século passado, como a "Portugal Futurista", marco do movimento modernista português.
“Da mais alta janela da minha casa/ Com um lenço branco digo adeus/ Aos meus versos que partem para a Humanidade”. (F. Pessoa).
No corredor de saída temos, para o nosso saber sobre o poeta misterioso e pouco revelador de si mesmo, um painel cronológico. Podemos nos enveredar por várias descobertas. O que pude verificar rapidamente numa consulta enviesada ao painel é que em 1894, com seis anos de idade, o menino Fernando Pessoa se desdobra já em seu primeiro heterônimo: Chevalier de Pas. Com sete anos escreve seus primeiros versos em homenagem a mãe. Com 14 anos, cria pequenos jornais. E, a partir de 1906, com 18 anos, inicia a criação de uma multiplicidade de alter-egos e vários heterônimos. Há muitos outros detalhes para saber e descobrir.
Saio aturdido, feliz, plenamente acolhido pela poesia do guardador de tantos e de todos nós.
Antonio Gil Neto
Saiba mais: http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/
Publicado em: 14/09/2010

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